Dando continuidade à minha intenção de desmistificar a TI para a mulherada pegar em armas e meter a mão na massa (mesmo), sigo entrevistando Luciana Fujii Pontello, entusiasta e usuária de software livre desde 2003 e contribuidora desde 2009. Hoje é desenvolvedora da Collabora, uma empresa de consultoria e desenvolvimento em software livre e é uma das desenvolvedoras do Cheese, software de Webcam do GNOME. Fujii é uma das mulheres que mete a mão no GnuLinuxsem medo de ser feliz, codando de verdade. Como perguntei via chat, fiz um compilado da nossa conversa e deixo aqui o registro. Quem quiser saber mais, tem outra entrevista que ela concedeu, de onde tirei a frase: “As for it being cool for girls, I would say it is just as cool as it is for boys. I don’t see much difference in that matter.” – o ponto de partida do nosso chat.
Essa resposta da Fujii quase tira as perguntas do cara da Muktware de contexto quando simplesmente destrói as barreiras entre homens e mulheres. Mas, existe uma espera da mídia por respostas do tipo “é bom que existam computadores rosa hoje em dia pra gente comprar”. Especificar necessidades femininas inexistentes para vender as mesmas fantasias depois é sempre uma maneira de aumentar as vendas de anúncios no veículo. Segundo Fujii, O problema é que nerd virou moda,né?
Perguntei como foi a experiência de Fujii com o machismo no ambiente de desenvolvimento. Sobre isso, ela seguiu contando fatos muito interessantes que mostram que existem barreiras, mas que quando o quesito técnico fala mais alto, elas são completamente destrutíveis:
Sofri só o machismo implícito, piadinhas, etc. No IRC todo mundo me trata como homem, aí tem o de sempre: se eu falo que sou mulher, levo já um: “VC É MULHER??!!!!???” – Fico muito triste porque a partir daí eles acham que eu sou um ET, uma raridade e ainda tem uns que acham apropriado falar aqueles “elogios”…
Uma vez,um colega meu de UFMG me disse que era mais fácil porque eu era mulher. Fiquei muito brava. Eu trabalhava desde o primeiro período, ralava muito, mas ele achava que eu conseguia as coisas porque era mulher. Eu tinha muito mais experiência que a maioria, tinha feito curso técnico no CEFET e trabalhava, mas ainda assim, ele achava que eu era boa porque todo mundo me ajudava pelo fato de ser mulher e bonita.
Esse foi o único que falou explicitamente,mas é incrível como o povo dá menos moral quando sabe que vc é mulher. O problema de comprovar que pessoas acreditam menos no seu trabalho quando você é mulher é que é preconceito velado, quase ninguém tem coragem de falar. Claro que tem gente que não: ja ouvi elogios pelo meu trabalho, mesmo quando ficavam sabendo que eu não sou homem.
Tive um episódio em um canal de IRC brasileiro uma vez. Eu já tinha ajudado o cara com código, ele sempre me perguntava se tinha comparecido aos eventos… Um dia o cara estava enganado sobre uma questão de desenvolvimento e eu tentei mostrar isso tecnicamente. Quando descobriu que eu era mulher,achou que eu não sabia do que estava falando e veio me ensinar o funcionamento básico de um HD. Mandou até eu olhar na wikipédia.
O pior é que eu nunca havia visto ele fazer isso com ninguém no canal. Era um iniciante, sabia menos que todo mundo, inclusive que eu, mas me subestimou, apesar de não subestimar mais ninguém no ambiente. Ao contrário: puxava saco de todos os homens. Daí tive que ir pra cima. Tem horas que é preciso impor respeito, porque ninguém te respeita nesse mundo se vc não der o grito. O ambiente de IRC, desenvolvimento, é muito masculino. Os homens são mais confiantes, se exibem. Se você age de forma mais insegura, o que parece mais típico de mulher, você se ferra. Eu sou muito insegura, mas aprendi que a gente tem que bancar o que quer fazer.
Nesse dia eu falei na lata que o cara era arrogante e que ele estava assumindo que eu não sabia. Mandei ele pesquisar antes de falar, que era óbvio que eu sabia como um HD funcionava e que ele é que estava confuso. Depois ele pediu desculpas, mas eu precisei demonstrar que tinha ficado ofendida pra isso acontecer. Se eu tivesse só discutido, o assunto ia passar batido. E não pode deixar passar.
Outra coisa interessante de contar é que na Collabora tem várias mulheres que trabalham em RH, operations, project manager… Mas só temos duas desenvolvedoras. E uma não era mulher quando entrou na empresa. Só que somos muito bem tratadas, o pessoal tem muita consciência. Antes de eu entrar pra empresa já era respeitada pelo meu trabalho. Ano passado fui a uma conferência de GStreamer que só tinha eu de mulher e ainda por cima era palestrante. Fiquei assustada, mas todos me trataram normalmente, sem nenhum preconceito. Mesmo com alguns detalhes, como por exemplo, o fato do pessoal dividir quarto em conferências e eu ficar sozinha, me senti igual a todos ali, sem diferenças por gênero.
Até conversei sobre isso com alguns colegas, muitos deles falaram que teriam problema em dividir o quarto comigo, que não se sentiriam a vontade, que a namorada/esposa ficaria com ciúmes…”
Eu e Fujii também conversamos sobre relações dentro do ambiente de TI entre mulheres e mulheres. O fato que mais chama a atenção é o das companheiras dos homens de TI acabarem sempre se isentando e se ausentando dos ambientes mais técnicos, o que acaba gerando uma competição injusta pra quem é mulher e trabalha com TI: as próprias mulheres. Perguntei a ela se já havia sido deixada de fora de rodas de conversa femininas porque “andava com meninos”. Fujii apontou um cenário conhecido: as meninas se juntam pra conversar sobre outras coisas, enquanto os namorados conversam sobre tecnologia. Como ela não se exclui da conversa, fica de fora da conversa das mulheres.
“É ruim porque você não encaixa direito em nenhum dos dois grupos. Os homens também querem conversar de coisas de homem, demonstrar o machismo, ver quem tem o pau maior e isso eu não vou fazer
Além disso, rola um ciúme talvez até inconsciente. Por exemplo: tenho um grupo de amigos da faculdade que se encontram todas as quintas. Eles não levam as namoradas, é o dia pra eles saírem sozinhos. Só que eu vou, porque sou do grupo de “amigos”. Então, elas acabam se unindo na exclusão e eu fico de fora.”
Fujii começou a contribuir com Software Livre no GNOME Outreach Program for Women, que é um programa que se assemelha ao Google Summer of Code, mas apenas para mulheres. No caso dela, o mentor e o mantenedor do projeto eram homens e ela afirma ser grata pela grande ajuda que recebeu.
Desde 2002 que falo de software livre, acho massa e tudo mais. Pra contribuir mesmo só depois do GNOME Outreach Program. Dei uma palestra no FISL esse ano relatando o tanto que eu enrolei porque achava que era difícil, mas não é. Peço para não seguirem meu exemplo: eu tinha ajudado já em organizacão de evento, palestrando um pouquinho e tudo mais, mas sou desenvolvedora. Precisava desenvolver e ponto.
Não acho que as mulheres tem que ser especiais, exemplos e tudo mais. É um peso muito grande que acaba atrapalhando. Mas eu também sugiro não se deixar intimidar nunca. O mundo de software livre tem pessoas toscas como em qualquer outro, e a comunicacão a distância é mais seca, isso pode assustar.
As pessoas falam abertamente sobre bugs e quando acham que um código não está bom. Mas se você for atrás, demonstrar que está interessada, sempre tem gente que ajuda e com o tempo se torna bem mais fácil. Então, uma postura que funciona para mim é não se deixar levar pelo medo e persistir, não levar nada como pessoal e evitar gente com quem você não se dá bem sem deixar te afetar.
Minha última pergunta foi se ela achava que o mundo do software livre era mais livre de preconceitos que outros ambientes de tecnologia. A resposta foi positiva.
O mundo do Software Livre recebe muito bem as mulheres. As comunidades percebem o valor da igualdade e é mais fácil politizar no sentido de eliminar o machismo dentro delas. Mas é uma construção. Precisamos de mais mulheres no ambiente.
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